* Este texto é uma versão ampliada deste post no Blog Urbanidades.
Em um texto anterior, propus um conceito de vitalidade urbana e discuti a importância da densidade de usos e pessoas. Neste, dou continuidade aos fatores da forma urbana e arquitetônica que influenciam mais diretamente esse fenômeno, tratando agora da acessibilidade, ou seja, da maior ou menor facilidade com que locais e pessoas são acessados pela população. Em primeiro lugar, é importante não confundir com mobilidade, que é a facilidade de se deslocar pelo sistema. Apesar de ambos estarem intimamente relacionados, são claramente duas coisas diferentes: maior mobilidade tende a trazer maior acessibilidade, mas não necessariamente. Uma maior mobilidade para um meio de transporte pode dificultar a acessibilidade para outro, como é o caso de grandes avenidas expressas que dificultam a transposição de pedestres. Além disso, uma parte importante da acessibilidade é justamente a desnecessidade de mobilidade, isto é, a diminuição das necessidades de deslocamento. Posicionar usos complementares próximos entre si, como residência e comércio vicinal, aumenta a acessibilidade e diminui a exigência de longas viagens de automóvel, por exemplo.
Mesmo reconhecendo que muito mais possa ser dito sobre a acessibilidade, tratarei aqui de apenas dois de seus aspectos: o papel dos modos de transporte e da configuração da rede de vias, esta última dividida em suas escalas local e global.
Os sistemas e modos de transporte
O primeiro e mais óbvio determinante da acessibilidade urbana são os diversos meios de transporte existentes, dentre os quais os mais comuns nas cidades brasileiras são o automóvel, a motocicleta, o ônibus, o metrô, o trem e a bicicleta. Não é difícil visualizar o automóvel como um elemento desvitalizador do espaço público, por todas as consequências já bem conhecidas que seu advento trouxe para as cidades: alargamento e criação de pistas de rolamento, estreitamento dos passeios, grandes áreas mortas destinadas a estacionamentos, separação de comunidades antes conectadas, vazios urbanos desertificados, espaços residuais, diminuição dos espaços destinados aos pedestres, suburbanização, centros comerciais ensimesmados, etc. Ainda assim, seria um erro negligenciar a acessibilidade que ele proporciona e seus efeitos alimentadores da vida urbana.
Quando analisamos um espaço com vitalidade urbana, como uma área central, logo percebemos que nem todas aquelas pessoas chegaram até ali a pé. Na verdade, intuímos que a maioria não chegou (não estou seguro quanto à existência de dados sobre isso). Portanto, aquela vitalidade foi alimentada, muito provavelmente, por uma combinação diversa de meios de transporte, motorizados ou não, individuais ou coletivos.
Dentre todas essas opções, a mais ineficiente, sob diferentes pontos de vista, é o automóvel: sua capacidade de transporte é bastante limitada, seu gasto energético alto, o espaço que ocupa no sistema viário é proporcionalmente muito maior do que os outros modos de transporte e suas altas velocidades trazem riscos severos para os pedestres. Por isso, há uma clara tendência, já há algumas décadas, especialmente entre os estudiosos da cidade, no sentido de priorizar modos de transporte coletivos e não motorizados. Sistemas eficientes, com boa cobertura, pontuais e frequentes são ferramentas valiosas para democratizar o acesso à cidade e dar suporte a experiências plenas e enriquecedoras do espaço urbano, bem como promover o encontro e o acesso aos diferentes recursos que fazem parte de nossa cada vez mais complexa e variada existência. São, portanto, fatores de vitalidade.
Por isso, para fomentar vitalidade de espaços urbanos é importante pensar em alimentá-los com linhas de transporte coletivo e a infraestrutura correspondente (estações, pontos de ônibus, faixas exclusivas, prioridade semafórica, etc.), bem como ciclovias, faixas de pedestres e outros equipamentos que aumentem a segurança dos pedestres e ciclistas e contribuam para que as pessoas troquem o automóvel por outro modo de transporte mais vantajosos para a cidade.
Acredito que esse ponto seja relativamente livre de controvérsias e já tenha sido exaustivamente debatido nos mais diversos âmbitos, por isso não faz muito sentido alongar-se nele. Passo, agora, a discutir um outro aspecto da acessibilidade que, apesar de ser tão ou mais importante, acabou recebendo relativamente pouca atenção.
Características locais da malha viária
Localmente, a principal característica do traçado viário associado a uma maior movimentação de pessoas e vitalidade nas ruas é o tamanho do quarteirão. Jacobs (2000), já na década de 60, defendia as quadras curtas como um dos elementos geradores de diversidade urbana. Segundo ela, isso gera alternativas de percursos e possibilita que os fluxos se distribuam por ruas que, de outra maneira, permaneceriam desertas. Quadras longas dificultariam o acesso de pedestres a ruas vizinhas, tornando apenas algumas ruas mais movimentadas e deixando outras esvaziadas, mesmo que a rigor estas estivessem próximas àquelas. Quadras curtas, por outro lado, permitiriam acesso a várias direções dentro de limites razoáveis de distância.
Um tipo de configuração espacial muito comum em Santa Catarina, conhecido como “espinha de peixe”, fornece um contra exemplo bastante expressivo. Essa forma de traçado viário é caracterizada por longas vias conectadas a apenas uma via principal, com pouquíssimas conexões diretas entre elas. As distâncias entre as conexões na via principal costumam ser curtas, mas as distâncias no outro sentido (perpendicular à via principal) podem chegar a mais de 1 quilômetro. A falta de conexão dessas longas vias entre si dificultam ou até mesmo inviabilizam os deslocamentos de pedestres entre elas. Como resultado, todos os deslocamentos são canalizados para a via principal, que em consequência:
- Tende a saturar-se por causa da grande quantidade de fluxo (tanto de pedestres quanto de veículos) que precisa escoar, funcionando como um funil;
- Tende a concentrar o uso comercial, uma vez que praticamente monopoliza os fluxos que os viabilizam.
Isso gera um círculo vicioso, em que fluxos atraem comércio, que atrai mais fluxo, e assim por diante. O valor do solo tende a aumentar na via principal por conta da competição por espaço, enquanto as ruas marginais permanecem vazias. Maior número de conexões entre essas vias (isto é, quadras mais curtas) poderiam gerar ruas que desempenham papel importante de conexão na escala local, intermediária entre a via principal e as vias perpendiculares, criando espaços adequados para comércios locais, de menor alcance. Se, além disso, essas conexões estiverem alinhadas entre si, gerando continuidade de percursos com algum grau de linearidade, essas vias podem vir a concentrar uma quantidade de fluxo significativa (ainda que menor que o da principal) e ajudar a estruturar o tecido e, talvez, abrigar usos comerciais e de serviços maiores e/ou mais especializados.
A configuração da malha de viária: aspectos globais
Apesar do possível efeito dos aspectos locais sobre o movimento de pedestres e a vitalidade de uma área, são as características configuracionais da malha – entendidas como aquelas que levam em conta as relações de um espaço em relação a outros – as que possuem maior influência sobre esses aspectos (veja, sobre isso, um artigo já clássico de John Peponis [1992] que faz uma revisão de abordagens urbanísticas clássicas e chama a atenção para seu caráter estritamente local). Estudos sintáticos (HILLIER et al, 1993; PENN et all, 1998; HILLIER; IIDA, 2005) têm recorrentemente encontrado altas correlações entre movimento de pedestres e medidas configuracionais como integração, integração angular e escolha, com diversos tamanhos de raios de análise. Isso significa que a posição e a distância de um espaço em relação a todos os outros espaços da malha urbana é um dos principais determinantes da quantidade de pedestres que passam por ele. Se considerarmos, por sua vez, que movimento de pedestres é um dos componentes basilares da vitalidade, temos aí a relação direta entre esta e a acessibilidade configuracional global.
Esse conceito de distância e seu papel na distribuição de fluxos, entretanto, apesar de sua simplicidade e apelo intuitivo, impõe seus desafios. À primeira vista seria possível imaginar que o conceito de distância métrica, euclidiana (ainda que através da rede de ruas) seria a mais indicada para “capturar” essas distâncias urbanas. Não obstante, tal procedimento mostrou-se consistentemente menos preciso em prever fluxos de pedestres quando comparado a outras maneiras de medir distâncias pela malha urbana. A maneira mais “tradicional” da Teoria da Sintaxe Espacial de inferir distâncias é topológica: atribui-se distância igual a 1 a dois espaços (representados por linhas axiais) diretamente conectados. As distâncias entre espaços não diretamente conectados são calculadas contando a quantidade de “passos” necessários para ir de uma linha a outra (mais especificamente, são determinadas através de algoritmos de caminho mínimo). Espaços cuja distância média a todos os outros espaços do sistema são menores (portanto mais próximos), são chamados de “integrados”; ao contrário, espaços mais distantes ou profundos em relação a todos os outros são chamados de “segregados”.
A partir disso, Hillier et al (1993) introduzem o conceito de movimento natural, que seria aquela porção do movimento de pedestres que é determinada apenas pela configuração viária (isto é, sem considerar usos do solo, topografia, densidades, etc.), e vincula-o à medida de integração, no sentido de que espaços (linhas axiais) mais integrados apresentariam maior taxa de movimento de pedestres do que espaços segregados. Com efeito, as correlações encontradas são significativas, da ordem de 0,547.
Outra maneira de capturar a distribuição de movimento proporcionada pela configuração do sistema viário é a medida de Escolha (HILLIER; IIDA, 2005). Ao contrário da integração, essa abordagem prioriza não a distância entre um espaço e todos os outros espaços do sistema, mas o quanto esse espaço é usado como passagem. A imagem abaixo mostra três pares de espaço com seus caminhos mínimos (a, b e c). A imagem d mostra o que seria uma “superposição” dos caminhos mínimos mostrados nas três primeiras imagens, e nela vemos que alguns trechos de quarteirão estão localizados, mais vezes que outros, nos caminhos mínimos exemplificados e, portanto, são mais centrais ou, em nos termos usados pela Teoria da Sintaxe Espacial, possuem maiores valores de Escolha (o termo talvez não seja o mais preciso, especialmente em sua tradução para o português, mas as alternativas “entremeamento” ou “intermediação” tampouco parecem muito amigáveis).
Penn et al (1998, p. 82) reforçam a importância do movimento de passagem:
“A maioria do movimento em áreas urbanas é movimento de passagem. A maioria das pessoas que você vê andando em uma rua tende a estar vindo e indo para outras ruas. Entretanto, sua presença é um dos maiores recursos das cidades. A presença de pessoas faz os espaços serem percebidos como vivos e seguros, e são o principal pré-requisito para a vida econômica da cidade.”
Portanto, a vitalidade de um espaço é, em grande medida, influenciada pela posição que ele ocupa na malha, isto é: a) o quão perto ou distante ele está de outros espaços; e b) o quão “central” ele é em relação aos outros espaços e o quanto, em decorrência disso, é utilizado como caminho entre pares de espaços.
Referências
HILLIER, B.; IIDA, S. Network effects and psychological effects: a theory of urban movement. Proceedings of the 5th Space Syntax Symposium. Anais... , 2005. Delft: TU Delft, Faculty of Architecture, Section of Urban Renewal and Management.
HILLIER, B.; PENN, A.; HANSON, J.; GRAJEWSKI, T.; XU, J. Natural movement: or, configuration and attraction in urban pedestrian movement. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 20, n. 1, p. 29–66, 1993.
JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000 (1961).
PENN, A.; HILLIER, B.; BANISTER, D.; XU, J. Configurational modelling of urban movement networks. Environment and Planning B: Planning and Design, v. 25, n. 1, p. 59–84, 1998.
PEPONIS, J. Espaço, cultura e desenho urbano no modernismo tardio e além dele. Revista AU, n. 41, p. 78–83, 1992.
SABOYA, R.; REIS, A.; BUENO, A. Continuidades e descontinuidades urbanas à beira-mar: uma leitura morfológica e configuracional da área conurbada de Florianópolis. Oculum Ensaios, v. 13, n. 1, p. 129–152, 2016.
SABOYA, R. Centralidade espacial: uma nova operacionalização do modelo baseada em um Sistema de Informações Geográficas, 2001. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre: Propur - UFRGS.